JARDIM: ELEVAÇÃO À CATEGORIA DE VILA
Tendo vagado o cargo de capitão-mor
do Cariri, apareceram a pretendê-lo dois homens, então bastante considerados, a
saber José Pereira Filgueiras, natural de Santo Amaro, em Sergipe, filho do
português José Quesado Filgueiras, e o sargento-mor José Alexandre Correa
Arnaud, descendente do povoador de Missão Velha, o segundo casado com uma
parenta do primeiro. Sem embargos do crédito que tinha Arnaud junto aos
ouvidores, e da consideração e prestígio, que reunia Filgueiras, cujo nome já
fazia muita bulha ao longe, e era, pela sua força física e formas atléticas, o objeto
dos respeitos e admiração do vulgo, pôde, apesar de menos opulento, fazer-se
escolher para esse cargo importante.
Filgueiras era um homem valente,
impetuoso, taciturno grave; Arnaud, faustoso, rico, mais culto e mais
inteligente. O primeiro era muito popular, o segundo, soberbo e retraído, um,
mais amigo da força que do direito, o outro, pacífico homem de princípios.
Essas duas personagens, que
repartiam entre si consideração pública no ariri, principalmente desde então a
se olhar com mútua aversão, e um acontecimento que os pôs em luta ....aberta os
levou a mudarem a face dos negócios no termo do Crato, dividindo a população.
Oliveira, tendo sido intimado da
ordem de prisão, não se quis entregar, e enviou Joaquim Ignácio Cardoso, irmão
de sua mulher, com um aviso a Filgueiras para vir resgatá-lo. O capitão-mor
recebeu o recado, como de ordinário, sombrio e silencioso, e deixou partir o
seu parente sem promessa alguma; mas depois, suspeitando que ele levasse más
intenções, montou a cavalo, seguindo-o até reunir-se a ele no arraial de Missão
Nova, e em sua companhia foi encontrar, a pouca distância, Oliveira, que já
vinha preso.
Filgueiras exigiu que este fosse
entregue, mas a escolta recusou formalmente, e indo por diante a questão,
Cardoso saltou em terra, cortou as cordas ao preso, mas caiu varado de uma
bala!
O furor de Filgueiras nesse momento
não teve limites. Tomar a arma ao moribundo, dispará-la sobre um dos Calados e,
com o coice dela, matar a dois outros foi obra de um instante. A escolta se
dispersou, e quatro cadáveres restaram sobre a terra!
A bravura e ferocidade que
Filgueiras desenvolveu nessa ocasião tiveram um grande eco e, acabando de
recomendá-lo ao respeito público, valeram-lhe o amor da gentalha. O homem
grosseiro só ama o que admira, e não admira, senão o que teme.
Filgueiras foi, desde então, a
personagem mais popular que já houve no Cariri; uma espécie de mito.
Os Calado acolheram-se à proteção do sargento-mor, este se fez forte com eles no seu sítio Logrador. Do mesmo modo Filgueiras, em chegando a seu engenho São Paulo, tratou de reunir gente e fez suas disposições para atacá-lo.
Nessas circunstâncias, interveio o
vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva Saldanha, interpondo sua influência para
aquietá-lo, e conseguiu que se debandasse a multidão, que tinha posto em armas.
Seguiu-se, porém, o processo dos Calados que, tendo sido pronunciados, Arnaud
afiançou e pôs em liberdade.
José Alexandre foi à capital
queixar-se ao governador Manoel Ignácio de Sampaio, e já o tinha posto de seu
lado quando Filgueiras se lhe apresentou
e fê-lo tomar o seu partido.
Sampaio obrigou Arnaud a recolher os
Calado à prisão, donde conseguiram evadir-se, e José Alexandre, preso à ordem no
Icó, só pode obter soltura a troco de um desterro para fora do Cariri.
Restituído à liberdade (1812),
empreendeu uma viagem à corte para reclamar contra a injustiça de que era
vítima, e no intuito de subtraír-se ao
ascendente de Filgueiras, tentar a criação de uma Vila no Jardim, à qual Missão
Velha ficasse ligada.
Nesse empenho foi mais feliz. Em
consequência de suas solicitações, o príncipe regente assinou o decreto de 20
de agosto de 1814, pelo qual foi o Jardim ereto em Vila, devendo seu termo
abranger não somente a povoação de Missão Velha, mas toda a freguesia,
excetuando-se, porém, o brejo Salamanca e os terrenos, que hoje formam a
freguesia da Barbalha, onde Filgueiras fazia sua residência habitual. Como
compensação, o cargo de capitão-mor da nova Vila foi conferido a José
Alexandre.
O ato celebrou-se no dia 3 de
janeiro de 1816, no meio dos regozijos públicos e com a assistência de vinte e
seis indivíduos, chamados da nobreza, entre os quais figuravam alguns, que bem
cedo tinham de ser derribados pelo tufão, que começava a soprar, notadamente o
fazendeiro Leonel Pereira de Alencar, personagem importante daqueles tempos.
Faltava ali o capitão-mor Arnaud,
que não viveu até esse dia, que devia reputar de seu triunfo. Ao voltar do Rio
de Janeiro, foi vítima de diabetes de que sofria, e morreu, sem ver completa
sua obra e suplantado o seu rival.
A Vila do Jardim foi inaugurada ao
grito de: 'real, real, viva o Sr. D. João, príncipe regente de Portugal', três
vezes repetido pelo meirinho geral da correição, de ordem do ouvidor Carvalho,
e respondido pelo povo, como era uso, desta vez em delírio de entusiasmo.
Cousa singular! Foi quase ao mesmo
grito, que esta multidão devia ser bem cedo dizimada, derramando-se muito
sangue. O próprio ouvidor estava reservado a bem duros transes! Foi deste modo
que uma rivalidade duradoura se ateou entre os dois termos; rivalidade, que,
passando de dois parentes a dois povos irmãos, só devia terminar afogada em
sangue.
Com a morte de José Alexandre, foi
nomeado capitão-mor de Jardim Pedro Tavares Munis.
Por provisão de 11 de outubro de 1814, foi criada no Jardim uma nova freguesia. Seu primeiro vigário colado foi o padre Antonio Manoel de Souza, que entrou em exercício em fevereiro de 1816.
FONTE: CEARÁ; HOMENS E FATOS. JOÃO BRÍGIDO DOS SANTOS
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